Processo de Conscerto do Desejo

Estrelado por Matheus Nachtergaele, Processo de Conscerto do Desejo é um exemplo dos mais eloquentes de como o teatro é capaz de transfigurar lindamente narrativa em poesia (presente já no título, na fusão das palavras “conserto” e “concerto”). Em 1968, no dia em que o ator, então um bebê de três meses, seria batizado, sua mãe, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele, se matou. Em vez de escorar-se no funesto episódio como uma história a ser contada, Matheus preferiu apenas se valer dele como ponto de partida para confeccionar um tocante poema cênico. Conforme a montagem se desenrola, vai ficando claro: o que importa aqui é menos a efêmera vida de Maria Cecília, seu ainda mais curto tempo de convívio com o filho e os desdobramentos traumáticos de seu suicídio, mas a possibilidade de vivificar fatos em arte, convertendo tragédia em beleza.

Para tanto, Matheus – aqui diretor de si mesmo, como não poderia ser diferente – escolheu trilhar o único caminho possível: aquele formado pelos belos poemas de Maria Cecília. Acompanhado apenas por Luã Belik (violão) e Henrique Rohrmann (este em intervenções mais pontuais ao violino), Matheus se apropria de cada verso com um entendimento e, mais do que isso, um ímpeto que em nenhum momento se confunde com desregramento. Entre o domínio invejável da palavra recitada e uma entrega física desconcertante, o ator magnetiza a plateia com uma atuação repleta de matizes e por vezes até bem-humorada, em que pese a sombra do luto. O despojamento da cena, do qual o desenho de luz de Bruno Aragão toma bom partido, presta serviço à atmosfera algo ritualística na qual o ator corajosamente ecoa sua própria e insuperável dor na obra poética da mãe.

[foto: Marcos Hermes]

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