Em tempos de intensa convulsão política como os que os brasileiros vivemos, Macbeth, de William Shakespeare, reafirma, uma vez mais, a eterna pertinência dos clássicos – daí a importância de serem sempre reencenados, como nesta montagem do diretor Ron Daniels, com Thiago Lacerda no papel-título (bisando a parceria da encenação que ambos fizeram de Hamlet, em 2012). Na história, após liderar o reino da Escócia em uma vitoriosa batalha, o general Macbeth escuta de três bruxas uma inusitada profecia: ele se tornará rei. É o suficiente para que o nobre, envenenado pela ambição e instigado por sua ardilosa mulher (vivida por Giulia Gam), comece a eliminar todos em seu caminho até o trono, em um derramamento de sangue com terríveis consequências para a sanidade do próprio casal.
Diretor honorário da Royal Shakespeare Company, especialista no autor inglês com mais de quarenta montagens de suas peças no currículo, Daniels (pseudônimo do brasileiro Ronaldo Daniel, um dos fundadores do Teatro Oficina, radicado no exterior desde os anos 60 e hoje vivendo em Nova York) assume um tratamento reverencioso ao texto – ainda que por trás de uma saudável liberdade da tradução, realizada pelo próprio diretor e por Marcos Daud. De fato, em nome da clareza, a obra chega aos ouvidos do público na justa medida, sem rebuscamento excessivo, mas também sem apelos vulgarizantes ou diversionistas. Aqui, Daniels se concentra aqui no desenvolvimento da ação basicamente pela potência da palavra, confirmando sua devoção ao autor, cuja obra já classificou como “o Evangelho”.
A opção do diretor encontra consonância na linha de interpretação do elenco – explicitada, frontal, algo declamante e fisgando por aí a atenção da plateia. Entre os coadjuvantes, Marco Antônio Pâmio, Marcos Suchara e Lourival Prudêncio se impõem com especial vigor aos eventuais limites ditados por seus papéis. Thiago Lacerda é um Macbeth de carisma, com domínio da palavra e desenvoltura no trânsito entre o destemor da ambição e a fragilidade do remorso. Giulia Gam encarna Lady Macbeth com entrega e densidade que não se confunde com overacting. O tom hierático das atuações tem um complemento dinâmico na cenografia de André Cortez, encimada por um expressivo painel de Alexandre Orion, repleto de faces humanas que se transfiguram sob a iluminação de Fábio Retti.
[foto: João Caldas]