Se Eu Fosse Iracema

Qualquer apreciação de Se Eu Fosse Iracema necessariamente parte (ou chegará à conclusão) de um fato inconteste: que extraordinária atriz é Adassa Martins! É através de sua poderosa interpretação que se canalizam, desdobram e amplificam as múltiplas virtudes deste monólogo, primeiro trabalho do coletivo 1COMUM, deflagrado por uma carta escrita em 2012 por índios da tribo guarani kaiwoá. No texto, eles pediam que fosse decretada a sua morte, mas que sua terra não lhes fosse tirada. O conteúdo da missiva sensibilizou o ator e diretor Fernando Nicolau, que convidou o dramaturgo Fernando Marques para mergulhar em uma pesquisa, donde resultou esta montagem fustigante sobre a questão indígena.

De saída, contabiliza-se o mérito do tema, raramente (nunca?) abordado no teatro brasileiro. A relevância e urgência do assunto se consumam de forma potente em cena, driblando o mero proselitismo em favor de uma dramaturgia sofisticada e vigorosa. Não há uma trama propriamente dita, mas sim uma delicada costura de discursos sobre a questão, apresentadas sob tintas performáticas. Trechos da Constituição de 1988, intervenções (carregadas de sarcasmo) de uma palestrante “justificando” o desmatamento, alocuções de um pajé e de outros índios sobre suas realidades, vozes narrativas diversas vão se intercalando de maneira orgânica, habilmente articuladas.

O resultado é positivamente assertivo, muitas vezes contundente, como deve, sem ser doutrinário. Da dramaturgia brotam reflexões que convidam à ação, sem efetivamente propô-las. Mais do que pensar a questão indígena – o aviltamento de sua cultura, a exclusão social a que são submetidos, a tomada de suas terras, a violência física que sofrem -, Se Eu Fosse Iracema consegue instilar na plateia ignorante do assunto (seguramente a imensa maioria) um profundo incômodo decorrente do seu próprio desconhecimento e de sua inércia. Fazê-lo sem abrir mão de uma investigação estética e de uma pesquisa de linguagem que valorizam o teatro é digno dos mais calorosos aplausos.

Visualmente, a montagem é de um acerto que não apenas enaltece a aparência, mas se integra com substância aos demais méritos, com força narrativa. A cenografia de Licurgo Caseira, composta por um tronco de árvore serrado, encimado por uma lâmina de vidro, é tão bela quanto imbuída de potência simbólica. Também de Caseira é a iluminação – viva, repleta de climas. Por vezes, o desenho de luz em fachos diagonais cruzando o palco ainda sugere as árvores da floresta ou, por outra, uma conexão mística da terra com o divino. O figurino de Luiza Fradin, uma saia de látex e um adorno de pescoço de feições primitivas, mas aparentemente de metal, fala por si mesmo, em um lugar entre a ironia e a tragédia.

A direção de Nicolau é hábil na condução desse quadro estilhaçado, traduzido no palco de forma harmônica e com modulações que favorecem o ritmo, o envolvimento e a fruição. Ao valoroso trabalho soma-se a enorme qualidade da performance de Adassa, imbuída de rara inteligência cênica para uma atriz tão jovem – à parte um aliciante carisma, que fisga mesmo a plateia mais avessa ao tema ou à proposta teatral em questão. Do humor à desgraça, do sarcasmo à virulência, não há tom, intenção ou registro que ela não incorpore com enorme desenvoltura. Um trabalho em que a entrega não ofusca a técnica, nem a meticulosidade obscurece a emoção. Que extraordinária atriz é Adassa Martins!

[foto: IMATRA]

A Vida de Dr. Antônio Contada por Elle Mesmo

Nascido em uma conhecida família gaúcha nos tempos da belle époque brasileira, Arthur Antunes Maciel poderia ter vivido de forma previsivelmente respeitável, como tantos de seus pares. Acabou, porém, adquirindo fama por atos que não condiziam com a nobreza de seu berço, ao realizar um sem-número de roubos em hotéis em várias cidades do país. Vestido elegantemente e utilizando variados pseudônimos  – entre os quais Dr. Antônio acabou se notabilizando -, ele se hospedava sem chamar a atenção, estudava os hábitos dos ocupantes dos outros quartos, alvos de seus furtos, e dava no pé tão logo atingia seu objetivo. Contada no livro Memórias de um Rato de Hotel, atribuído ao jornalista, cronista e dramaturgo João do Rio (1881-1921), essa história inspira A Vida de Dr. Antônio Contada por Elle Mesmo, novo (e aliciante) espetáculo da Cia Bélica, com dramaturgia de Felippe Vaz, direção de Cesar Augusto e codireção de Fabiano de Freitas.

Eis aqui uma caso em que a forma, longe de ser um exercício de estilo, se liga intimamente ao conteúdo. A começar pelo palco da montagem: o Paço Imperial, edifício histórico na Praça XV, Rio de Janeiro, sugestivo da época da trama. Some-se a isso o fato de que a peça é itinerante: cada cena acontece em um ambiente do prédio, sugerindo a própria ideia de mobilidade que marcou a vida do Dr. Antônio. A escolha poderia se prestar ao risco de dispersões, mas tudo aqui é conduzido de maneira fluida e orgânica, com direito a uma providencial escolta ao vivo dos trombonistas Everson Moraes e Jonas Hocherman, sob direção musical de Murilo O’Reilly. A direção de arte de Bia Junqueira – coroada na potente instalação na qual se dá a última cena -, a luz de Genilson Barbosa – um desafio em se tratando do espaço em questão – e os figurinos de Antônio Guedes – em algum lugar entre a virada para o século XX e o contemporâneo – valorizam e emprestam significados ao quadro estético.

A dramaturgia de Felippe Vaz (construída a partir de uma adaptação, assinada por Renata Mizrahi, do livro de João do Rio) não se deixa obscurecer pelas eventuais inovações e exuberâncias formais – ao contrário, se integra dinamicamente a elas e tira dali o melhor proveito. Em seu desenvolvimento, a narrativa parece refletir a própria trajetória do protagonista em seus altos e baixos: parte de um drama de tintas familiares e, digamos, algo existencialistas, no qual o personagem entende aquilo que será para o resto da vida; assume, então, um ar de comédia ligeira e divertida, com pitadas de crítica social; até, por fim, chegar a uma oportuna e contundente denúncia sobre o sistema carcerário do país, quando o clima da montagem se adensa. E, na levada da montagem, tudo soa unificado, como partes de colorações distintas, mas devidamente integradas ao todo dramático – uma costura delicada que o trabalho da direção preserva em cena.

Na opção por escalar todo o elenco masculino como intérprete do protagonista, cada qual em um determinado momento da peça,  refletem-se as múltiplas identidades que o ladrão assumia para escapar incólume. Sob condução arguta dos diretores, André Rosa, Breno Motta, Danilo Moraes, Felipe Frazão, Rômulo Chindelar e Victor Albuquerque alcançam uma louvável unidade de atuação a bordo do personagem principal, além de se dividirem com versatilidade por outros papéis. Na ala feminina, Dani Cavanellas, Flávia Coutinho e Sarah Lessa enaltecem mesmo as menores possibilidades oferecidas pelos coadjuvantes. Em uma das imagens mais impactantes do espetáculo, todos se engajam em uma espécie de coro formado por Clóvis (ou Bate-Bolas), as figuras carnavalescas ao mesmo tempo sedutoras e temíveis – evocando a ambiguidade de dândi criminoso do Dr. Antônio.

[foto: Elisa Mendes]