Love, Love, Love

É noite de 25 de junho de 1967, os Beatles cantam All You Need Is Love na primeira transmissão mundial de TV via satélite, quando a jovem Sandra (Débora Falabella) chega ao apartamento de Henry (Mateus Monteiro), em algum lugar de Londres, para um encontro. Ela é bela, inteligente, libertária e dona de uma personalidade instigante. Ele, na melhor hipótese, é um sujeito comum. Não à toa, a moça será fisgada rapidamente pela beleza, virilidade e porralouquice de Kenneth (Rafael Primot), irmão do pretendente, que está por ali, dando sopa – e demonstrando interesse recíproco. E, na primeira chance, quando Henry se ausenta por breves minutos, os dois levam adiante seus instintos.

Em Love, Love, Love, o britânico Mike Bartlett parece reiterar o egoísmo e a desumanização do outro como força motriz da ação dramática – característica presente em outras peças do autor já montadas por aqui, a ver: em Cock – Briga de Galo, a covardia de um rapaz indeciso entre dois amores mantém a vida de ambos em estado de imobilidade; em Bull, dois funcionários de uma empresa se unem contra outro quando os três veem seus empregos em risco; e em Contrações – encenado aqui pelo mesmo Grupo 3 de Teatro que assume esta soberba montagem de Love, Love, Love -, uma gerente faz um inferno na vida de uma recém-contratada a partir de uma cláusula supostamente banal no contrato de admissão.

Aqui, longe de questões amorosas ou profissionais, o dramaturgo centra fogo em conflitos familiares e geracionais. Se, no primeiro ato, a egolatria de Sandra e Kenneth atropela qualquer sentimento de culpa pela traição infligida ao namorado/irmão, tal egotismo se estenderá miseravelmente à relação deles com os filhos nas cenas seguintes. Primeiro, em algum momento dos anos 90, quando o casal (agora interpretado por Yara de Novaes e Ary França), tão concentrado em si mesmo, ignora os rebentos (papéis agora assumidos por Débora e Primot). Depois, no derradeiro e triunfal ato, quando os dois, mais velhos e separados, se veem diante de um possível acerto de contas com os filhos desajustados.

A direção de Eric Lenate (do ótimo Mantenha Fora do Alcance do Bebê, também com Débora) imprime à montagem um ritmo e um ânimo que valorizam a dramaturgia sem trair-lhe as origens britânicas – seja na cadência narrativa relativamente desapressada e rigorosa, seja na comicidade amarga. Colaboram neste sentido as evocações geográficas da cenografia de André Cortez e dos figurinos de Fabio Namatame, críveis na construção da passagem de tempo e precisos como expressão da realidade de cada personagem. A luz de Gabriel Fontes Paiva (membro do Grupo 3 de Teatro ao lado de Débora e Yara) reforça intenções e climas, fugindo à previsibilidade talvez esperada de uma peça de feitio realista.

Na mesma toada, o diretor se vale de marcas inesperadas e ricas de significados, como a opção por deixar fisicamente no palco, à vista do público, atores cujos personagens não estão de fato em cena. O efeito é particularmente belo no primeiro ato, quando Yara e França parecem olhar embevecidos para Débora e Primot – como se Sandra e Kenneth mais velhos recordassem uma saudosa e já tão distante juventude. Igualmente escancarada aos olhos do espectador, sem subterfúgios, são as transições entre os atos, com o próprio elenco manipulando o mobiliário e trocando roupas e perucas (embalados pela trilha de L.P. Daniel, hábil na mistura de Beatles, Caetano Veloso e New Kids on the Block).

Mas é na dinâmica entre os atores que a peça revela a sua maior potência. Mateus Monteiro aproveita seu pouco tempo em cena, exibindo um comedimento perfeitamente ajustado à banalidade de seu personagem. Quanto ao quarteto principal, brilhos individuais genuínos se acumulam sem prejuízo do coletivo. Débora e e Primot cumprem com enorme galhardia o périplo de seus personagens – da rebeldia arrogante de Sandra e Kenneth, à patética realidade dos filhos do casal no segundo ato, e daí ao fracasso impotente no fim. França é o retrato perfeito da autoindulgência e da superficialidade. Magnífica, Yara personifica o mais absoluto hedonismo com tintas de histeria e requinte.

Ao fim de pouco mais de duas horas do melhor teatro, simultaneamente político e psicológico, no qual questões amplas se abatem sobre o particular, Bartlett nos coloca diante de um impasse aparentemente sem solução: ser vítima do egoísmo alheio pode ter consequências funestas, é certo; mas a opção contrária, perpetrá-lo, seria menos terrível?

[foto: Leekyung Kim]

 

Mata teu Pai

Em Mata teu Pai, primeiro monólogo da atriz Debora Lamm, celebrando aqui vinte anos de carreira, o feminino transborda como um grito urgente e incoercível. “Preciso que me escutem”, é o que brada, logo na primeira fala do espetáculo, esta Medeia contemporânea – uma des(ou re?)construção da personagem mítica e da protagonista da tragédia grega, sob a pena sempre hábil de Grace Passô. E, de fato, há muito por ser escutado.

Trata-se, à sua maneira, de um libelo feminista – vigoroso e até beligerante, mas de uma riqueza, poética no texto e teatral na encenação, que dilui qualquer ranço panfletário ou doutrinário. Aqui, à desdita da Medeia clássica, traída pelo amado e impelida a matar seus próprios filhos como vingança, interpõem-se temas prementes à mulher de hoje, como aborto, estupro, equidade, intolerância, estigmatização e preconceito.

A direção de Inez Viana, engenhosa como de hábito, imprime uma extensa gama de sentidos na condução desse curto mas demandante tour de force, alternando ritmos e climas. Contribuição decisiva nessa riqueza de significados tem o cenário de Mina Quental, evocando algo como um cemitério de lixo eletrônico (monitores, teclados, carregadores de celulares, baterias), uma terra arrasada onde a humanidade teima em subsistir.

Rodeada em cena por catorze senhoras moradoras da região da Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro – um achado que sugere um coro grego a amparar os desvarios de Medeia -, Debora Lamm tem aqui o que talvez seja o papel de sua vida. Senhora absoluta do texto e de suas intenções, a atriz exibe a um só tempo técnica e expressividade, em performance de notável entrega. Não é ela que precisa que a escutem, nós é que precisamos ouvi-la.

[foto: Aline Macedo]

Gritos

É de uma alquimia invulgar o que a Dos à Deux alcança em Gritos, seu mais recente espetáculo. Sozinhos em cena – como há dezoito anos no trabalho que batizou e originou a companhia -, André Curti e Artur Luanda Ribeiro revelam um profundo entendimento das possibilidades do teatro gestual, factível apenas a quem, como eles, tem se dedicado há anos com labor ao desbravamento dessa linguagem.

Desenvolvida ao longo do processo de pesquisa e criação da montagem, a dramaturgia é composta de três poemas cênicos – os gritos aos quais o título alude – evocativos da inexorável convivência entre angústia e amor. Surgem no palco uma mulher nascida em um corpo masculino, um homem com a cabeça e o corpo separados e desesperados por se encontrar, uma grávida sobrevivente da guerra.

Embasados em uma coerência artística que não abre mão de seus fundamentos, Curti e Luanda Ribeiro aqui, no entanto, desdobram sua pesquisa de linguagem ao utilizar, pela primeira vez, seus próprios corpos (ou partes deles) como modelos para os bonecos que são manipulados em cena – um assombro de execução, confeccionados em estreita colaboração com a marionetista russa Natacha Belova e o brasileiro Bruno Dante.

De um rigor absoluto na manipulação, calcado em sutilezas e minúcias, a Dos à Deux extrai a potência dramática de Gritos. Cenografia (da dupla, indicada aos prêmios Shell e Cesgranrio), luz (sofisticada em sua “escuridão”, de Luanda Ribeiro e Hugo Mercier, concorrendo ao Cesgranrio), figurinos (de Thanara Schonardie), música (de Marcelo H, Beto Lemos e Fernando Mota), tudo se integra perfeitamente ao conjunto, serve à dramaturgia e dialoga com ela.

Para além dos muitos méritos do espetáculo, talvez o mais significativo seja uma visão ampla do teatro gestual: uma arte que, ainda que fincada em um trabalho de observação acurada do mundo real, se torna tanto mais rica quanto mais se desincumbe da obrigação de imitar a realidade. Onírico, ilusório, impossível, são tais as instâncias com as quais o público se depara em Gritos e é nelas que o espetáculo fundamentalmente se realiza. Não é preciso verossimilhança onde a verdade se impõe.

[foto: Renato Mangolin]

Demônios

Sobre o que considerava uma reação incompreensível a suas peças, Nelson Rodrigues escreveu certa vez: “As senhoras me dizem: – ‘Eu queria que os seus personagens fossem como todo mundo’. E não ocorre a ninguém que os meus personagens são como todo mundo, daí a repulsa que provocam. Ninguém gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções.” É tal a sensação que Demônios, do sueco Lars Norén, provoca na plateia, um incômodo só possível de brotar no melhor teatro – que a montagem da Cia Teatro Esplendor, sob direção de Bruce Gomlevsky, potencializa em alto nível.

De saída, o adensamento da ação dramática no espaço de uma única noite já acentua a voltagem. A tensão se estabelece nos primeiros diálogos entre Frank (Bruce Gomlevsky) e sua mulher, Katarina (Luiza Maldonado), assim que ele chega ao apartamento do casal, carregando as cinzas da mãe recém-falecida. Eles aguardam o irmão de Frank e a esposa dele, mas a chegada das visitas é inesperadamente adiada. A relação doentia – e simbiótica – dos dois, então, vai se estender a Tomas (Gustavo Damasceno) e Jenna (Thalita Godoi), o casal de vizinhos (como se verá, também disfuncional), que eles chamam para um drinque.

Ao longo da noite, o que era para ser um encontro agradável entre conhecidos rapidamente se converte em uma escalada degradante de humilhações sem qualquer sinal de compaixão ou trégua. Atados a uma interdependência algo patológica, os quatro destilam incômodas verdades e se entregam a provocações sexuais que guardam ecos de Quem Tem Medo de Virgina Woolf, de Edward Albee, e Festa de Família, de Thomas Vinterberg (esta última, aliás, já montada duas vezes por Gomlevsky). É uma vertiginosa descida às infâmias cotidianas que o ser humano é capaz de cometer – e às quais, por vezes, se submete voluntariamente.

Encenador acostumado a esse universo – além de Festa de Família, já montou O Funeral, também de Vinterberg, A Volta ao Lar, de Harold Pinter, e O Homem Travesseiro, de Martin McDonagh, todos dramas impregnados de vileza -, Gomlevsky se mostra à vontade na condução desta montanha-russa emocional. Como nos trabalhos anteriormente citados, há uma evidente valorização do texto, das reflexões que emergem dele e, como decorrência necessária disso, das relações entre os personagens e da dinâmica entre os atores. Aqui, entrosamento se revela gênero de primeira necessidade – e é plenamente alcançado.

Não que faltem méritos ao restante da ficha técnica: visualmente, cenário (de Gomlevsky e Bel Lobo), figurinos (de Andrea Fleury) e luz (de Elisa Tandeta) não apenas emolduram a encenação como revestem situações e personagens de significados. Vale destacar, aliás, a conformação da plateia na temporada original da montagem, com a maior parte do público elevado acima do palco, circundando-o, como se observasse uma rinha de galos ou uma luta de gladiadores, e mais alguns poucos espectadores sentados nas beiradas, como se imersos na cena – circunstância dificilmente reproduzível em um palco italiano.

Aqui, entretanto, quem comanda o baile (ao som de Norén) são mesmo os atores, bem-sucedidos na dura missão de tornar crível uma sucessão de perversidades demasiadamente humanas. Positivamente, não há destaques a serem apontados: com atuações tão precisas quanto vibrantes, Gomlevsky, Luiza, Damasceno e Thalita entendem cada qual a sua posição no tabuleiro e sua dinâmica com os demais. Entre dubiedades de intenções e explosões furiosas de sinceridade, os quatro vão tirando esqueletos do armário – os deles e aqueles que nós, espectadores, gostaríamos de manter escondidos.

Lady Christiny

Somente o mundo real seria capaz de parir uma figura como Lady Christiny – fosse invenção de um ficcionista, apontariam-lhe a falta de verossimilhança. Como Celso Marques, seu nome de batismo, ele foi por dezoito anos um homem, digamos, típico, heterossexual, casado com a mãe de seus dois filhos. À certa altura, porém, ele se descobre apaixonado por um amigo e correspondido em seu interesse. Em nome da preservação da família, o casal resolve chamar o sujeito para morar com eles, mas a vida a três não demora a entrar em crise: o recém-chegado passa a cortejar também a esposa. Para ela, trata-se de um indicativo de que o rapaz gosta, na verdade, de mulheres. Assim, para manter intacta aquela estrutura familiar, Celso vira uma travesti. É esse insólito personagem que o ator Alexandre Lino, em excelente performance, apresenta no monólogo Lady Christiny.

Insólito, aliás, parece ser pouco para definir essa figura. Não fossem já curiosas o bastante as motivações para a sua transformação, Lady Christiny nutria ideias conservadoras, que o senso comum julgaria especialmente bizarras vindas de um homem que decidiu ser uma travesti para manter um relacionamento amoroso com outro sujeito. As falas destiladas ao longo da peça são reveladoras: Lady Christiny acha um horror ver dois homens se beijando no meio da rua, não se envergonha de dizer que torce para sua filha não se tornar lésbica, acredita que muito do preconceito contra os gays é culpa da promiscuidade deles próprios. Idealizador da montagem e envolvido há anos em uma pesquisa de linguagem sobre teatro documental, Lino se aproxima dessa personagem com um apropriado (e, de certa forma, até corajoso) distanciamento, que não a condena e nem a absolve previamente.

Tal abordagem encontra alicerces no texto de Daniel Porto, um passo além na crueza dramática já revelada em outras obras de teatro documental realizadas por ele em parceria com Lino. Se em O Pastor (2013), trabalho inaugural da dupla, o personagem do líder evangélico inspirava gargalhadas pelo seu próprio ridículo, aqui a desidratação de qualquer tom de autocrítica (embora tampouco haja condescendência) pode provocar um certo incômodo. A direção cirúrgica de Maria Maya tensiona esse jogo em marcações sutis e uma estética austera que reforçam o tom algo confessional com que o ator/personagem se dirige à plateia. Nesse sentido, a direção de arte de Tati Brescia (responsável por cenário e figurino), muito bem amparada pela luz de Renato Machado, é de uma simplicidade expressiva, que potencializa a intimidade com o público.

A bordo dessa controversa figura real, desprovido de quaisquer muletas cênicas e envergando um figurino resumido a camisa, calça e sapatos cáquis, o ator magnetiza a plateia com um excelente trabalho de voz e de corpo – este talvez o mais impressionante, considerando que Lino passa os cinquenta minutos de peça sentado diante de um microfone. As transições entre o narrador e a personagem são suaves, mas absolutamente nítidas, marcadas por discretas mudanças de entonação vocal, gestos, feições e postura. É em Lino que está a âncora dessa peça estranhamente distanciada, mas nunca indiferente à personagem, que entrega inteiramente ao espectador a missão de refletir sobre ela e, consequentemente, sobre o mundo. Não é isso, afinal, que se espera da arte?

[foto: Janderson Pires]

Os Inadequados

Uma passeada rápida pelo Facebook comprova: no Brasil de 2016, a intolerância parece ter se entranhado indelevelmente na natureza das pessoas – uma praga avassaladora que não discrimina espectro ideológico. Em Os Inadequados, seu quinto espetáculo, a Cia OmondÉ converteu esse sufocante estado de coisas em teatro de rara qualidade: antenado com seu tempo, mas atemporal; contundente, mas não doutrinário; político, mas não partidário; engraçado, mas reflexivo; arrojado cenicamente, mas sintonizado com a plateia.

Na base da montagem está uma ideia da atriz Debora Lamm (integrante da OmondÉ, mas ausente no elenco da peça), que sugeriu a criação de um texto a partir de extratos reais de livros de reclamação de condomínios. Desenvolvida coletivamente pela companhia, a dramaturgia prescinde de uma história tradicional, com início, meio e fim. Em vez disso, aposta na força intrínseca das mensagens de moradores queixosos de seus vizinhos, aqui costuradas e proferidas de um lugar que sugere um recital sem abandonar a teatralidade.

De saída, o resultado é fabuloso em sua capacidade de evocar, no microcosmo das relações entre vizinhos, o clima de intolerância radical que se instalou no país. Há reclamações sobre tudo: música alta, animais de estimação, sexo barulhento. A essas mensagens reais, com as quais a plateia fatalmente se identifica em algum momento, misturam-se duas ou três criadas por atores da companhia – e é de espantar que o absurdo reinante na maior parte das missivas pareça sugerir que a melhor ficção pode ser suplantada pela realidade.

O material colhido pela OmondÉ seria, em si, farto para a realização de uma peça que se entregasse desbragadamente à comédia – e não seria, necessariamente, um espetáculo ruim por isso. Mas, a companhia opta pelo caminho mais trabalhoso: dosar humor e reflexão em cada aspecto da montagem. Na costura das mensagens, no ritmo dado à encenação, no tom das interpretações, nada dá sinais de histrionismo cômico. A decisão encontra amparo em um minimalismo cenográfico que só faz reforçar o discurso.

A direção de Inez Viana (aqui assistida por Helder Agostini e Lucas Lacerda), como de hábito, é intrigante, fresca mesmo para quem julga conhecer seu trabalho, visível sem obscurecer a dramaturgia. Com colaboração decisiva de Dani Amorim na idealização das coreografias, o elenco – formado por Iano Salomão, Jefferson Schroeder, Juliane Bodini, Junior Dantas, Leonardo Bricio, Luis Antonio Fortes, Marta Paret e Zé Wendell – exibe uma força em conjunto que dispensa menções individuais. Nada mais apropriado para uma peça cuja principal reflexão é justamente sobre o convívio.

[foto: Aline Macedo]

Se Eu Fosse Iracema

Qualquer apreciação de Se Eu Fosse Iracema necessariamente parte (ou chegará à conclusão) de um fato inconteste: que extraordinária atriz é Adassa Martins! É através de sua poderosa interpretação que se canalizam, desdobram e amplificam as múltiplas virtudes deste monólogo, primeiro trabalho do coletivo 1COMUM, deflagrado por uma carta escrita em 2012 por índios da tribo guarani kaiwoá. No texto, eles pediam que fosse decretada a sua morte, mas que sua terra não lhes fosse tirada. O conteúdo da missiva sensibilizou o ator e diretor Fernando Nicolau, que convidou o dramaturgo Fernando Marques para mergulhar em uma pesquisa, donde resultou esta montagem fustigante sobre a questão indígena.

De saída, contabiliza-se o mérito do tema, raramente (nunca?) abordado no teatro brasileiro. A relevância e urgência do assunto se consumam de forma potente em cena, driblando o mero proselitismo em favor de uma dramaturgia sofisticada e vigorosa. Não há uma trama propriamente dita, mas sim uma delicada costura de discursos sobre a questão, apresentadas sob tintas performáticas. Trechos da Constituição de 1988, intervenções (carregadas de sarcasmo) de uma palestrante “justificando” o desmatamento, alocuções de um pajé e de outros índios sobre suas realidades, vozes narrativas diversas vão se intercalando de maneira orgânica, habilmente articuladas.

O resultado é positivamente assertivo, muitas vezes contundente, como deve, sem ser doutrinário. Da dramaturgia brotam reflexões que convidam à ação, sem efetivamente propô-las. Mais do que pensar a questão indígena – o aviltamento de sua cultura, a exclusão social a que são submetidos, a tomada de suas terras, a violência física que sofrem -, Se Eu Fosse Iracema consegue instilar na plateia ignorante do assunto (seguramente a imensa maioria) um profundo incômodo decorrente do seu próprio desconhecimento e de sua inércia. Fazê-lo sem abrir mão de uma investigação estética e de uma pesquisa de linguagem que valorizam o teatro é digno dos mais calorosos aplausos.

Visualmente, a montagem é de um acerto que não apenas enaltece a aparência, mas se integra com substância aos demais méritos, com força narrativa. A cenografia de Licurgo Caseira, composta por um tronco de árvore serrado, encimado por uma lâmina de vidro, é tão bela quanto imbuída de potência simbólica. Também de Caseira é a iluminação – viva, repleta de climas. Por vezes, o desenho de luz em fachos diagonais cruzando o palco ainda sugere as árvores da floresta ou, por outra, uma conexão mística da terra com o divino. O figurino de Luiza Fradin, uma saia de látex e um adorno de pescoço de feições primitivas, mas aparentemente de metal, fala por si mesmo, em um lugar entre a ironia e a tragédia.

A direção de Nicolau é hábil na condução desse quadro estilhaçado, traduzido no palco de forma harmônica e com modulações que favorecem o ritmo, o envolvimento e a fruição. Ao valoroso trabalho soma-se a enorme qualidade da performance de Adassa, imbuída de rara inteligência cênica para uma atriz tão jovem – à parte um aliciante carisma, que fisga mesmo a plateia mais avessa ao tema ou à proposta teatral em questão. Do humor à desgraça, do sarcasmo à virulência, não há tom, intenção ou registro que ela não incorpore com enorme desenvoltura. Um trabalho em que a entrega não ofusca a técnica, nem a meticulosidade obscurece a emoção. Que extraordinária atriz é Adassa Martins!

[foto: IMATRA]

A Vida de Dr. Antônio Contada por Elle Mesmo

Nascido em uma conhecida família gaúcha nos tempos da belle époque brasileira, Arthur Antunes Maciel poderia ter vivido de forma previsivelmente respeitável, como tantos de seus pares. Acabou, porém, adquirindo fama por atos que não condiziam com a nobreza de seu berço, ao realizar um sem-número de roubos em hotéis em várias cidades do país. Vestido elegantemente e utilizando variados pseudônimos  – entre os quais Dr. Antônio acabou se notabilizando -, ele se hospedava sem chamar a atenção, estudava os hábitos dos ocupantes dos outros quartos, alvos de seus furtos, e dava no pé tão logo atingia seu objetivo. Contada no livro Memórias de um Rato de Hotel, atribuído ao jornalista, cronista e dramaturgo João do Rio (1881-1921), essa história inspira A Vida de Dr. Antônio Contada por Elle Mesmo, novo (e aliciante) espetáculo da Cia Bélica, com dramaturgia de Felippe Vaz, direção de Cesar Augusto e codireção de Fabiano de Freitas.

Eis aqui uma caso em que a forma, longe de ser um exercício de estilo, se liga intimamente ao conteúdo. A começar pelo palco da montagem: o Paço Imperial, edifício histórico na Praça XV, Rio de Janeiro, sugestivo da época da trama. Some-se a isso o fato de que a peça é itinerante: cada cena acontece em um ambiente do prédio, sugerindo a própria ideia de mobilidade que marcou a vida do Dr. Antônio. A escolha poderia se prestar ao risco de dispersões, mas tudo aqui é conduzido de maneira fluida e orgânica, com direito a uma providencial escolta ao vivo dos trombonistas Everson Moraes e Jonas Hocherman, sob direção musical de Murilo O’Reilly. A direção de arte de Bia Junqueira – coroada na potente instalação na qual se dá a última cena -, a luz de Genilson Barbosa – um desafio em se tratando do espaço em questão – e os figurinos de Antônio Guedes – em algum lugar entre a virada para o século XX e o contemporâneo – valorizam e emprestam significados ao quadro estético.

A dramaturgia de Felippe Vaz (construída a partir de uma adaptação, assinada por Renata Mizrahi, do livro de João do Rio) não se deixa obscurecer pelas eventuais inovações e exuberâncias formais – ao contrário, se integra dinamicamente a elas e tira dali o melhor proveito. Em seu desenvolvimento, a narrativa parece refletir a própria trajetória do protagonista em seus altos e baixos: parte de um drama de tintas familiares e, digamos, algo existencialistas, no qual o personagem entende aquilo que será para o resto da vida; assume, então, um ar de comédia ligeira e divertida, com pitadas de crítica social; até, por fim, chegar a uma oportuna e contundente denúncia sobre o sistema carcerário do país, quando o clima da montagem se adensa. E, na levada da montagem, tudo soa unificado, como partes de colorações distintas, mas devidamente integradas ao todo dramático – uma costura delicada que o trabalho da direção preserva em cena.

Na opção por escalar todo o elenco masculino como intérprete do protagonista, cada qual em um determinado momento da peça,  refletem-se as múltiplas identidades que o ladrão assumia para escapar incólume. Sob condução arguta dos diretores, André Rosa, Breno Motta, Danilo Moraes, Felipe Frazão, Rômulo Chindelar e Victor Albuquerque alcançam uma louvável unidade de atuação a bordo do personagem principal, além de se dividirem com versatilidade por outros papéis. Na ala feminina, Dani Cavanellas, Flávia Coutinho e Sarah Lessa enaltecem mesmo as menores possibilidades oferecidas pelos coadjuvantes. Em uma das imagens mais impactantes do espetáculo, todos se engajam em uma espécie de coro formado por Clóvis (ou Bate-Bolas), as figuras carnavalescas ao mesmo tempo sedutoras e temíveis – evocando a ambiguidade de dândi criminoso do Dr. Antônio.

[foto: Elisa Mendes]

Colecção de Amantes

Em 2014, já vivendo no Brasil havia três anos e estimulada por uma proposta surgida no curso de mestrado que fazia na UFRJ, a portuguesa Raquel André deu início a um acervo singular, que ela batizaria de Colecção de Amantes (com C mudo em “colecção”, seguindo a grafia de Portugal, ora pois). O projeto consistia – na verdade, consiste, já que ele segue em andamento até hoje – na realização de encontros de uma hora com pessoas desconhecidas, de perfis múltiplos, de qualquer sexo e de todas as idades. Uma por vez, elas se encontram com Raquel em um apartamento, onde, nas palavras da artista, os dois “ficcionalizam uma situação de intimidade, que será registrada em pelo menos uma fotografia”.

Por “situação de intimidade”, entenda-se um leque amplo de possibilidades de convívio, que transbordam o significado da palavra amante para além daquele popularmente atribuído a ela. A definição de amante, para Raquel, é sua quintessência mesma, aquela que primeiro se lê no verbete da palavra no dicionário Aurélio: “que ama”. Intimidade, aqui, pode ser dividir uma garrafa de vinho, deitar na cama juntos, assistir a um filme, usar o banheiro simultaneamente, maquiar e se deixar ser maquiada. Trata-se, enfim, de uma performance sui generis, na qual o espectador é convidado a abandonar seu habitual lugar de passividade e engajar-se no processo com a artista – tornando-se parte de sua coleção.

Seria, por si só, um trabalho meritório, não apenas pela singularidade de suas proposições estéticas como pelos questionamentos filosóficos que suscitam. Da coleção de Raquel brotam reflexões a respeito do próprio colecionismo e, por tabela, sobre a própria vida. O que, como e por que colecionamos? Colecionamos até sem saber disso? O conjunto de pessoas com quem nos relacionamos, por exemplo, é uma coleção? Completar uma coleção, se isso é factível, é também decretar a morte dela, já que uma coleção só seria viva na medida em que se está colecionando? É possível colecionar coisas impossíveis de serem guardadas, como um encontro? Admitindo que sim, como registrar e catalogar isso?

Ao conjunto de performances soma-se um espetáculo dele resultante, com o mesmo nome de Colecção de Amantes. É ali, na exposição artística das intimidades acumuladas para um público “de fora”, que o projeto se completa e se realiza em sua maior potência, elevando as reflexões citadas a um novo patamar. O teatro não é, ele próprio, da mesma maneira que os encontros de Raquel, uma experiência essencialmente fugaz? Uma peça que tenha sido encenada em certo dia, se reencenada no dia seguinte com o mesmo elenco, com cada espectador vestindo a mesma roupa e sentado no mesmo assento, será exatamente igual à da véspera? Sabemos que não. E, indo além: é possível colecionar essas vivências?

Sob direção da própria Raquel (única pessoa em cena) e de Bernardo Almeida, a montagem impressiona em sua fusão de simplicidade e significado. O cenário, assinado pela dupla, e a luz, de Rui Monteiro, recriam um estúdio fotográfico, evocativo da escolha de Raquel pela fotografia como modo de registrar os encontros. Ali, inicialmente, ela desfia um inventário ao mesmo tempo documental e poético dos mesmos. A partir daí, com uma naturalidade só possível a quem respira a sua própria obra, vai esmiuçando episódios vivenciados por meio do seu colecionismo, enlaçando o público para levá-lo a um final vertiginoso – sugestão da própria vertigem que é colecionar. Um trabalho, enfim, cheio de inteligência e sofisticação, mas – talvez o mais importante nos dias que vivemos – repleto de amor.

[foto: Tiago de Jesus Brás]

Dorotéia

Das dezessete obras escritas por Nelson Rodrigues (1912-1980) para o teatro, quatro se abrigam sob o guarda-chuva que o crítico Sábato Magaldi chamou de “peças míticas” do autor: Álbum de Família (1946), Anjo Negro (1946), Senhora dos Afogados (1947) e Dorotéia (1949). Definidos pelo próprio Nelson como exemplares do seu “teatro desagradável”, são textos que exploram a simbologia de mitos ancestrais e acabaram entrando para a história como seus trabalhos mais “difíceis” – tanto para encenadores quanto para espectadores. Assim, encenar qualquer uma já seria em si uma empreitada corajosa. No caso aqui desta montagem de Dorotéia, com o diretor Jorge Farjalla no leme e as atrizes Leticia Spiller e Rosamaria Murtinho à frente do elenco, à coragem da ideia soma-se o êxito do resultado.

A história começa quando a personagem-título (Leticia) bate à porta da casa das primas, as viúvas Dona Flávia (Rosamaria), Maura (Alexia Deschamps) e Carmelita (Jacqueline Farias). Tendo vivido até então como prostituta, ela decide mudar de vida após a morte do filho. Mas suas parentes não vão recebê-la bem: as três são acometidas por uma espécie de praga que assola as mulheres da família desde a bisavó, uma irrevogável repulsa ao sexo contraída em suas noites de núpcias. Daí a indizível e orgulhosa feiura do trio, em oposição à beleza luminosa de Dorotéia. Acrescente-se a esse quadro a presença de Maria das Dores (Anna Machado), filha de Dona Flávia, que está em vias de casar com o filho de Dona Assunta (Dida Camero) – e, espera-se, também de ser assaltada pela maldição da família.

Tal infortúnio que se abate sobre as viúvas é apenas uma das imagens bizarras, mas cheias de força simbólica, destiladas por Nelson. A casa onde vivem as três, por exemplo, não tem quartos, porque é neles que se dá o pecado. As primas chegam ao extremo de não dormir, para que seus sonhos não venham impregnados de desejos carnais. O noivo de Maria das Dores é representado por nada menos do que um simples par de botas. E a própria filha de Dona Flávia, como se verá, na verdade nasceu morta, mas, não tomando conhecimento do ocorrido, segue vivendo – até a resolução absolutamente insólita da questão. São alegorias potentes, por meio das quais o autor explora temas recorrentes em sua obra dramática, como sexo, castidade, obsessão, loucura, repressão, culpa, conservadorismo, religiosidade.

À parte essa complexidade de tintas delirantes, há, como já foi observado, entraves de ritmo inerentes ao texto original. Aqui, porém, eles surgem diluídos na vigorosa direção de Farjalla, que reforça o expressionismo da trama na estética da montagem. Cenário de José Dias, luz de Patrícia Ferraz, figurinos de Lulu Areal, maquiagem e visagismo de Anderson Calixto, tudo conspira em prol de uma atmosfera ao mesmo tempo devaneante e claustrofóbica, exuberante e opressiva. O tempo inteiro em cena, seis instrumentistas –Fernando Gajo, Pablo Vares, Du Machado, André Américo, Daniel Veiga Martins e Rafael Kalil, sob direção musical de João Paulo Mendonça – intensificam o clima de estranheza na proximidade com o público, nas roupas oníricas e na trilha sonora onipresente.

A direção de atores segue uma linha algo hierática, vigorosa, enérgica, na qual cumpre destacar com louvor a contribuição do trabalho de preparação vocal de Patrícia Maia. As curtas aparições de Dona Assunta são aproveitadas por Dida com forte presença cênica e timing de humor. No difícil papel de Maria das Dores, Anna revela um trabalho de voz e corpo de alto nível, cheio de expressividade por trás dos véus que literalmente cobrem seu corpo. Alexia e Jacqueline entregam uma composição corporal persuasiva. Senhora das intenções de sua Dorotéia, Leticia acompanha a qualidade do elenco com uma performance ao mesmo tempo sensível e potente, frágil e sensual. Mas é na interpretação superlativa de Rosamaria, expressiva e de alta voltagem, que a montagem encontra o seu epicentro.

[foto: Carol Beiriz]