Processo de Conscerto do Desejo

Estrelado por Matheus Nachtergaele, Processo de Conscerto do Desejo é um exemplo dos mais eloquentes de como o teatro é capaz de transfigurar lindamente narrativa em poesia (presente já no título, na fusão das palavras “conserto” e “concerto”). Em 1968, no dia em que o ator, então um bebê de três meses, seria batizado, sua mãe, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele, se matou. Em vez de escorar-se no funesto episódio como uma história a ser contada, Matheus preferiu apenas se valer dele como ponto de partida para confeccionar um tocante poema cênico. Conforme a montagem se desenrola, vai ficando claro: o que importa aqui é menos a efêmera vida de Maria Cecília, seu ainda mais curto tempo de convívio com o filho e os desdobramentos traumáticos de seu suicídio, mas a possibilidade de vivificar fatos em arte, convertendo tragédia em beleza.

Para tanto, Matheus – aqui diretor de si mesmo, como não poderia ser diferente – escolheu trilhar o único caminho possível: aquele formado pelos belos poemas de Maria Cecília. Acompanhado apenas por Luã Belik (violão) e Henrique Rohrmann (este em intervenções mais pontuais ao violino), Matheus se apropria de cada verso com um entendimento e, mais do que isso, um ímpeto que em nenhum momento se confunde com desregramento. Entre o domínio invejável da palavra recitada e uma entrega física desconcertante, o ator magnetiza a plateia com uma atuação repleta de matizes e por vezes até bem-humorada, em que pese a sombra do luto. O despojamento da cena, do qual o desenho de luz de Bruno Aragão toma bom partido, presta serviço à atmosfera algo ritualística na qual o ator corajosamente ecoa sua própria e insuperável dor na obra poética da mãe.

[foto: Marcos Hermes]

Caesar – Como Construir um Império

Elogiado nos últimos anos por montagens sui generis de obras de Ésquilo, Beckett e Pinter, o diretor Roberto Alvim, da companhia paulistana Club Noir, enfrenta pela primeira vez um Shakespeare nesta potente e radical adaptação de Júlio César. Como de hábito em sua trajetória, marcada pela busca obsessiva da singularidade, o encenador passa ao largo do trivial em Caesar – Como Construir um Império. De saída, optou-se por apresentar a tragédia com apenas dois atores – Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia, em interpretações rigorosas e repletas de tensão dramática. A dupla transita entre vários personagens, notadamente Júlio César, Brutus, Cássio e Marco Antônio, identificados por sutilíssimas diferenças nas composições de corpo e voz.

À primeira vista (e apenas à primeira vista) paradoxalmente, a adaptação de Alvim é subversiva e também respeitosa com o clássico. Enxugado de modo a deixar a montagem com cerca de uma hora, somente, o texto densifica o enredo sobre as maquinações políticas que resultariam no assassinato do imperador Júlio César e seus desdobramentos posteriores. No processo, ficam à mostra as entranhas da história e amplifica-se a sua essência de maneira poderosa. Paralelos com a realidade política de hoje, especialmente a brasileira, irrompem o tempo todo do texto, deixando clara a incômoda atualidade da obra original.

Marca do trabalho de Alvim como diretor, a forma aqui tem papel decisivo. E não apenas emoldurando o conteúdo como imiscuindo-se nele e transfigurando-se em recurso narrativo. O revezamento dos atores (envergando figurinos semelhantes, de João Pimenta) em múltiplos papéis, por exemplo, reforça a ideia da alternância dos discursos e ações no jogo político. A cenografia, também de Alvim, põe os atores sobre uma espécie de arena, remetendo à imagem de uma luta. Milhares de moedas cobrem o espaço, iluminado por um fio de néon vermelho, evocações do dinheiro e do sangue sobre os quais se constrói um império. O desenho de luz (também assinado pelo diretor) privilegia a penumbra, sugerindo as sombras sob as quais de desenrolam os arranjos da política.

Merecedora de uma menção à parte, a trilha composta para piano pelo filósofo Vladimir Safatle (e executada ao vivo por Mariana Carvalho) revela contornos trágicos em seu minimalismo. Mais do que isso, converte-se em praticamente um terceiro integrante do elenco, atuando em sintonia fina (e com precisão de relógio suíço) com Ciocler e Dalla Vecchia e, de certa forma, embasando-lhes o ritmo e as modulações vocais, por vezes se sobrepondo às vozes dos atores, com um efeito profundamente sinestésico. Sugestão, quem sabe, da influência de forças alheias sobre as ações individuais – e seu poder de, como Brutus jamais teria imaginado ao apunhalar César, conduzi-las a um resultado nefasto.

[foto: Ricardo Brajterman]