Os Realistas

“Acho que nada de extraordinário vai acontecer com a gente hoje”, diz João, personagem de Fernando Eiras em Os Realistas, já na última cena da peça, referindo-se a ele mesmo, à sua mulher, Julia (Mariana Lima), e aos vizinhos José (Emílio de Mello) e Pônei (sim, é este o nome da personagem de Debora Bloch). Sob um céu estrelado, jogando conversa fora, bebendo cerveja e ouvindo música, a constatação do quarteto é inequívoca: de fato, nada de extraordinário vai acontecer – assim como lá se vão quase duas horas de espetáculo e nada de extraordinário se deu. Isso, claro, se esquecermos que mesmo a vida presumivelmente mais banal já é extraordinária o bastante. Tal é a tese que o dramaturgo americano Will Eno parece defender neste magnífico texto, aqui montado sob direção de Guilherme Weber.

A peça se inicia com João e Julia conversando na área externa de sua casa, quando são surpreendidos pela chegada de José e Pônei, seus vizinhos recém-mudados, que até então não conheciam. Os casais descobrem ter o mesmo sobrenome – o que só aparentemente é a única coisa que têm em comum, como o espectador mais atento deve notar. Desenvolve-se, então, uma relação entre os quatro, sempre apoiada em diálogos algo evasivos, por vezes truncados, outras tantas absurdos, evocando um realismo psicológico que não se pauta em arcos dramáticos claros. É como se não houvesse progressão da trama, mas uma série de cenas curtas quase sem interdependência. Voltando à fala de João, aqui nada de extraordinário acontece. E, no entanto, acontece tanta coisa que dá até vertigem.

No que diz respeito ao texto, estritamente, trata-se de um exercício formal dificílimo de engendrar sem obscurecer a comunicação com o público, driblando experimentalismos impenetráveis. Mas é o que Eno, nesta sua primeira peça apresentada na Broadway, faz de maneira luminosa com esses personagens. De fato, João, Julia, José e Pônei são tão reais que qualquer espectador será capaz de se identificar com pelo menos uma de suas questões – e, ao mesmo tempo, são algo suprarreais, como se fossem mais realistas do que o real. Mortalidade, solidão, casamento, medos, incomunicabilidade, todas essas miudezas, a rigor nada miúdas, são tratadas nos diálogos sem ranço de grandiloquência, mas com grande profundidade e um insuspeito humor.

Em seu sexto trabalho com uma obra de Eno, Weber aproveita todo o seu conhecimento sobre o autor para extrair o melhor desta peça estranhamente aliciante, contrabalançando as evasivas e lacunas propositais do texto no evidenciado jogo entre os personagens. Mais do que apenas visualmente belos, a cenografia de Daniela Thomas e Camila Schmidt, a luz de Beto Bruel e os figurinos de Ticiana Passos reforçam essa atmosfera meio suprarreal, defendida já no texto e estendida à direção. A esse conjunto em si de notável excelência somam-se Debora, Mariana, Mello e Eiras, um elenco daqueles de causar inveja a qualquer diretor – imbuído de verdade, estupendo em suas individualidades e ainda mais potente na contracena. Enfim, uma experiência teatral a ser degustada como uma iguaria fina.

[foto: Leo Aversa]

Macbeth

Em tempos de intensa convulsão política como os que os brasileiros vivemos, Macbeth, de William Shakespeare, reafirma, uma vez mais, a eterna pertinência dos clássicos – daí a importância de serem sempre reencenados, como nesta montagem do diretor Ron Daniels, com Thiago Lacerda no papel-título (bisando a parceria da encenação que ambos fizeram de Hamlet, em 2012). Na história, após liderar o reino da Escócia em uma vitoriosa batalha, o general Macbeth escuta de três bruxas uma inusitada profecia: ele se tornará rei. É o suficiente para que o nobre, envenenado pela ambição e instigado por sua ardilosa mulher (vivida por Giulia Gam), comece a eliminar todos em seu caminho até o trono, em um derramamento de sangue com terríveis consequências para a sanidade do próprio casal.

Diretor honorário da Royal Shakespeare Company,  especialista no autor inglês com mais de quarenta montagens de suas peças no currículo, Daniels (pseudônimo do brasileiro Ronaldo Daniel, um dos fundadores do Teatro Oficina, radicado no exterior desde os anos 60 e hoje vivendo em Nova York) assume um tratamento reverencioso ao texto – ainda que por trás de uma saudável liberdade da tradução, realizada pelo próprio diretor e por Marcos Daud. De fato, em nome da clareza, a obra chega aos ouvidos do público na justa medida, sem rebuscamento excessivo, mas também sem apelos vulgarizantes ou diversionistas. Aqui, Daniels se concentra aqui no desenvolvimento da ação basicamente pela potência da palavra, confirmando sua devoção ao autor, cuja obra já classificou como “o Evangelho”.

A opção do diretor encontra consonância na linha de interpretação do elenco – explicitada, frontal, algo declamante e fisgando por aí a atenção da plateia. Entre os coadjuvantes, Marco Antônio Pâmio, Marcos Suchara e Lourival Prudêncio se impõem com especial vigor aos eventuais limites ditados por seus papéis. Thiago Lacerda é um Macbeth de carisma, com domínio da palavra e desenvoltura no trânsito entre o destemor da ambição e a fragilidade do remorso. Giulia Gam encarna Lady Macbeth com entrega e densidade que não se confunde com overacting. O tom hierático das atuações tem um complemento dinâmico na cenografia de André Cortez, encimada por um expressivo painel de Alexandre Orion, repleto de faces humanas que se transfiguram sob a iluminação de Fábio Retti.

[foto: João Caldas]

A Tropa

Internado em um quarto de hospital, um viúvo (Otávio Augusto) é visitado por seus quatro filhos. Cada um deles trilhou um caminho distinto: o primogênito Humberto (Alexandre Menezes) é um dentista militar que mora com o pai; Artur (Edu Fernandes), casado e pai de duas filhas, trabalha em uma construtora investigada por corrupção; o jornalista Ernesto (Rafael Morpanini), em crise profissional, pediu demissão da empresa na qual trabalhava; e João Baptista (Daniel Marano), o caçula, é usuário de drogas com passagens por clínicas de reabilitação. Como se verá em A Tropa, peça do autor estreante Gustavo Pinheiro, com direção de Cesar Augusto, poderia ser uma simples reunião familiar, não fossem os rapazes unidos por mágoas profundas em relação ao patriarca, um autoritário militar da reserva.

Vencedor da etapa carioca da última edição do concurso de dramaturgia Seleção Brasil em Cena, o texto expõe as vísceras de relações que tentam desesperadamente se manter de pé. De fato, em que pesem as ressalvas mútuas que pai e filhos cultivam entre si, escancaradas sem prudência, aqui parece subsistir um íntimo desejo de manter algum nível de união da “tropa” – ainda que à força de segredos, recalques e escamoteamentos que não resistirão ao infeliz encontro familiar. Por trás de um playwriting clássico do ponto de vista formal, de pegada abertamente realista e evocações algo novelescas, o autor exibe traquejo no desenvolvimento da trama e na construção dos diálogos, além de uma organicidade na incorporação de referências e discussões profundamente atuais.

Em um interessante contraponto ao realismo do texto, o quarto de hospital recriado no belo cenário de Bia Junqueira é evocativo em seu minimalismo, sugerindo uma arena na qual os personagens se digladiam – impressão reforçada pela divisão da plateia em duas arquibancadas. A direção de Cesar Augusto, aqui assistido por Raquel André, tira o melhor proveito do bom acabamento do texto, impondo um ritmo ágil e um colorido abertamente cômico, sem descuido dos momentos de maior tensão dramática. Jovens recém-formados em artes cênicas, os quatro atores que interpretam os filhos atendem plenamente a essa linha traçada pelo diretor. Mas é Otávio Augusto quem, entre o humor e a perversidade, deleita-se com seu protagonismo e naturalmente catalisa as atenções.

[foto: Elisa Mendes]

Anti-Nelson Rodrigues

Penúltima obra de Nelson Rodrigues para o teatro, encenada originalmente em 1974, Anti-Nelson Rodrigues é uma criação sui generis do autor – daí, naturalmente, o seu curioso nome. Em contraste com as desgraças típicas de suas tragédias cariocas (como O Beijo no Asfalto, Bonitinha, mas Ordinária e Toda Nudez Será Castigada, textos imediatamente anteriores), aqui o tom é otimista, com direito a um insuspeito final feliz. Não que Nelson tenha deixado de lado suas obsessões. Estão lá os tipos canalhas, as relações meio incestuosas, as mulheres enganosamente ingênuas, os personagens folclóricos. Sua linguagem, seu estilo, seu dom de frasista, nada aqui contradiz sua obra, preservada em toda a integridade nesta excelente montagem do Grupo Tapa, dirigida com apuro por Eduardo Tolentino de Araújo.

Logo na cena inicial, o jovem playboy Oswaldinho (Augusto Zacchi) é flagrado pela mãe, Tereza (Clara Carvalho), roubando as suas joias. O pendor por tomar aquilo que não lhe pertence é só um dos muitos atributos detestáveis do rapaz, herdeiro do milionário Gastão (Eduardo Semerjian), a quem despreza e por quem é rejeitado. Entre os mais notórios vícios do moço está a desfaçatez diante de mulheres – como Joice (Carol Cashie), uma funcionária recém-contratada de uma das fábricas do pai, da qual ele se tornou presidente apenas por influência materna. Obcecado pela garota e acostumado desde sempre a ter tudo que quer, Oswaldinho resolve conquistá-la de qualquer maneira. Mas ela é noiva, religiosa e, ao que parece, incorruptível mesmo diante do cortejo mais dedicado e das ofertas mais generosas.

A direção de Eduardo Tolentino de Araújo reforça o sentido de teatralidade na opção de deixar o elenco inteiro à vista da plateia o tempo todo – com direito a personagens que não fazem parte da cena reagindo às ações de quem faz. Fiel à atmosfera rodrigueana, o diretor preserva o indisfarçável tom de autoparódia do texto, no qual Nelson parece brincar consigo mesmo. Com algumas cadeiras, um aparador e um grande espelho no fundo que coloca o espectador em cena (referência, quem sabe, à máxima de Nelson de que seus “personagens são como todo mundo, daí a repulsa que provocam”), o cenário de Marcela Donato, iluminado por Nelson Ferreira, se presta à valorização do texto. Os figurinos, também de Marcela, refletem apropriadamente as personalidades de cada papel.

No mesmo diapasão do texto, a linha de interpretações entrega um registro mais cômico, resvalando na caricatura – mas que nunca descamba no escracho absoluto. No papel principal, Zacchi incorpora o patético do personagem, entre um apropriado charme meio crápula a sujeição ridícula à moça alvo de suas investidas. Com um quase invisível trabalho de corpo e voz, Carol mostra segurança na pele da donzela. No elenco coadjuvante, Semerjian, investindo em uma divertida empostação vocal para o seu Gastão, e Oswaldo Mendes, vivendo Salim Simão, o jornalista aposentado e pai zeloso de Joice, aproveitam as amplas oportunidades dadas por seus personagens. Cesar Baccan e Penha Pietra’s completam o elenco ao lado da citada Clara Carvalho, todos em participações certeiras.

[foto: Ronaldo Gutierrez]

Fatal

O universo dos mitos não é exatamente novo para Guilherme Leme Garcia. Como diretor, ele esteve à frente dos ótimos RockAntígona (2010) e Trágica.3 (2014), montagens que, a partir de um olhar arrojado, exploravam ícones da tradição helênica em desbravamentos cênicos. Agora em Fatal, ele se espraia para além da Grécia (sem, entretanto, abandoná-la de todo) e mantém o padrão de excelência. Aqui, a ideia é versar sobre o amor por meio de lendas de três apaixonados casais – personificados em cena por Debora Lamm e Paulo Verlings. A convite do diretor, cada uma das três histórias foi livremente reinterpretada por um nome de peso da dramaturgia contemporânea nacional. Assim, Pedro Kosovski escreveu sobre Eros e Psiquê, pinçado da mitologia grega; Marcia Zanelatto se incumbiu de Tristão e Isolda, de origem celta; e a Jô Bilac coube Kama e Rati, de proveniência indiana.

Em que pese a diversidade entre os textos, os três soam unidos por evocações líricas, garantindo uma potente coesão. O diretor tomou partido dessa linha mestra no palco, confeccionando um belo poema cênico em três estrofes, cada qual com suas marcações singulares, mas perfeitamente integradas. Cada elemento da montagem converge para essa abordagem poética – o cenário de Aurora dos Campos, sugerindo uma câmara ou mesmo um altar, a luz algo mística de Tomás Ribas e os figurinos negros de Marcelo Olinto remetem a um lugar onírico. O tom das atuações segue essa linha, em um minimalismo radical de expressões e movimentos através do qual se vislumbra a força das palavras e se densifica o amor presente nos mitos. Debora e Verlings dominam o texto e estabelecem uma contracena poderosa (e dificílima) por trás de uma aparente ausência de interação.

[foto: Zô Guimarães]

Master Class

“Como ter rivais se elas não fazem o que eu faço?”, pergunta sarcasticamente Maria Callas, a certa altura de Master Class. Mas a verdade é que, no momento em que se desenrola a peça do americano Terrence McNally, a própria cantora já não era mais capaz de fazer o que fazia: sua voz, antes reverenciada pelo mundo, rateava, e seu espírito se via especialmente abalado desde que o milionário grego Aristóteles Onassis, seu companheiro, a trocara por Jacqueline Kennedy, viúva do presidente americano John Kennedy. Marca da vida de Callas, essa ambivalência entre soberba e insegurança perpassa decisivamente o texto, montado no Brasil em 1996, com Marília Pêra (1943-2015) no papel principal, e defendido agora com irresistível brilho por Christiane Torloni, sob direção segura de José Possi Neto.

A ação se passa em uma das aulas magna (devidamente ficcionalizada pelo autor) que Callas ministrou entre 1971 e 1972 na Juilliard School, renomada instituição de ensino de música e artes cênicas em Nova York. Ali, a diva vai compartilhar experiências com jovens aspirantes ao estrelato, ouvi-los e orientá-los – com toda a mordacidade que lhe é peculiar. Habilmente, McNally introduz nesse recorte temporal e geográfico uma série de referências à trajetória de Callas, aqui felizmente sem pretensões enciclopédicas, mas como parte mesma da narrativa – algo parecido com o que o inglês Peter Quilter fez em O Fim do Arco-Íris, para citar outra peça montada no Brasil, na qual a vida da atriz e cantora Judy Garland se revela no espaço de cinco semanas em que a ação dramática se desenvolve.

O resultado é um texto limpo, de acabamento burilado, apreciável tanto por quem conhece a trajetória de Callas quanto para quem dela sabe apenas o trivial. A montagem parece desconfiar um tanto desse alcance e recorre à exibição, antes do início da peça, de um vídeo biográfico cheio de imagens de arquivo (plenamente dispensável, ainda que não embarace o resultado). Entre esculhambações e palavras de estímulo aos alunos, a diva, mais do que sua idiossincrática personalidade, vai mesmo desnudando sua alma, notadamente em dois solilóquios evocativos de um lugar onírico, que se interpõem à ação em tempo real. Por trás da aparente caricatura de diva orgulhosa, arrogante e inflexível, o que se vê é uma Maria Callas humana em suas contradições – cheia de fragilidades, mas nunca apenas vítima.

A direção de José Possi Neto transita com desenvoltura entre o humor inerente às ironias de Callas e o viés trágico de sua história, bem como entre o tom realista da aula e o colorido apropriadamente operístico dos solilóquios da protagonista. A ambientação conferida pelo cenário de Renato Theobaldo e pela luz de Wagner Freire se situa nessa zona fronteiriça, evocando, em seu desenho abstrato, a imagem de uma câmara de concerto. No elenco, Thiago Rodrigues e Thiago Soares entregam com correção o que demandam seus limitados papéis, respectivamente um pianista e um contrarregra. Vivendo os alunos, Julianne Daud, Leandro Lacava e Jayana Paiva não chegam a alcançar nas atuações a mesma qualidade do canto. Alvo natural das atenções da plateia, Christiane Torloni entrega uma interpretação cheia de sutis modulações e, nas poucas vezes em que lhe é exigido, surpreende no canto.

[foto: Marcos Mesquita]

Como Eliminar Seu Chefe

Um tanto escondida sob a embalagem de comédia despretensiosa, 9 to 5, de Colin Higgins, lançado nos cinemas em 1980, trazia uma reflexão especialmente relevante à época sobre questões ligadas à igualdade de gêneros. Na história, escrita pelo diretor e por Patricia Resnick, três secretárias, revoltadas com o chefe autocrata, sexista e abusivo, acabam por sequestrá-lo. Quase três décadas se passaram entre a estreia do filme e sua transposição para os palcos da Broadway, em 2009, na forma de um musical com canções de Dolly Parton (intérprete, aliás, de uma das funcionárias-sequestradoras do longa, ao lado de Jane Fonda e Lily Tomlin). De lá para cá, mais seis anos até a primeira montagem brasileira do espetáculo, dirigida por Cláudio Figueira e com versões de Flávio Marinho. E, em que pesem os louváveis avanços, a pauta feminista levantada há 36 anos não está superada.

Na história, Júlia (Simone Centurione) é uma jovem recém-separada que vai trabalhar em um escritório. Entre os demais funcionários que a recebem está a experiente Violeta (Stela Maria Rodryigues, substituindo Tânia Alves, que integrou o elenco no início da temporada) e a exuberante Dorali (Sabrina Korgut). De uma forma ou de outra, todas são alvo do chefe Franklin Ratto (Marcos Breda), um especialista em transformar a vida dos subordinados em um inferno, com a ajuda da secretária dedo-duro Rosa (Gottsha). Eventualmente, as três acabam por se aproximar e, meio sem querer, sequestram o patrão. Que se avise logo: a trama é recheada de situações absurdas, que exigem certa suspensão da descrença. Uma vez entendido o jogo, porém, a plateia tem diante de si uma comédia família, agradável, talvez um tanto envelhecida em um ou outro ponto, mas honesta em suas pretensões.

Nesse sentido, a direção de Figueira não trai o filme, tampouco a montagem americana, preservando o tom comportadamente divertido de ambas sem esvaziar a reflexão. Há, é verdade, um ou outro senão mais perceptível na encenação, a começar pelas versões algo irregulares de Flávio Marinho para as canções de Dolly Parton (em que pese a reconhecida dificuldade de adaptar para a realidade brasileira o universo americano retratado nelas). As qualidades da cenografia de Clívia Cohen – também responsável pelos figurinos corretos, equilibrando-se com um visagismo meio desacertado – convivem com uma manipulação truncada na transição de uma cena para outra, quebrando ligeiramente o ritmo. No papel do chefe, Marcos Breda parece tentar compensar certa fragilidade vocal incorporando o tom desbragadamente cômico de sua atuação ao canto – a julgar pela reação da plateia, dá certo.

Em que pesem as ressalvas, numa daquelas mágicas que o teatro às vezes proporciona, o todo aqui se revela maior do que suas partes somadas. Decisivo para tanto, além da já mencionada desenvoltura cômica e do carisma de Breda, é o ótimo desempenho do trio principal, especialmente no que diz respeito ao canto, mas também no contagiante timing de humor (quesito em que Sabrina Korgut, ressalte-se, nada de braçada com sua Dorali). No elenco coadjuvante, Cristiana Pompeo garante divertidos momentos na pele de uma funcionária afeita à bebida, e Gottsha, como de hábito, rouba a cena nas oportunidades dadas à sua personagem. A caprichada direção musical de Liliane Secco lustra as melodias grudentas das canções e fisga a plateia. Resultado: um espetáculo adorável em sua pegada de Sessão da Tarde, que satisfaz plenamente quem busca diversão.

[foto: Guga Melgar]

Relações Aparentes

O namoro de Greg (Michel Blois) e Ginny (Anna Sophia Folch) ainda é recente e o rapaz já acumula motivos para desconfiar da fidelidade dela: telefonemas misteriosos em horários impróprios, vários buquês de flores de remetentes desconhecidos, uma gaveta entupida de caixas de chocolates que não se sabe direito de onde vieram. O amor que ele sente por ela, porém, se impõe. Mas a verdade é que Ginny tem, sim, um caso às escondidas – com Philip (Tato Gabus Mendes), um homem com idade para ser pai dela e, não bastasse isso, casado. Apaixonada pelo namorado, porém, a garota opta por terminar a relação secreta e ruma até a casa dele para resolver a questão, dando a Greg um evasivo pretexto de uma visita aos pais. A situação em si já enrolada vai degringolar de vez quando o jovem, tendo descoberto o endereço ao qual a amada se encaminha, decide dar uma incerta por lá – mas chega antes e passa a tomar Philip e sua mulher, Sheila (Vera Fischer) como seus futuros sogros.

Escrita pelo prolífico Alan Ayckbourn (ao que consta, o segundo autor inglês mais montado da história, atrás somente de William Shakespeare) e encenada pela primeira vez em 1965, Relações Aparentes é, de certa forma, um retrato do seu tempo: um vaudeville algo ingênuo, mais ainda em tempos cínicos como os de hoje, mas de indiscutíveis graça e elegância – com espaço até para alguma crítica social, notadamente no desconcerto dos personagens masculinos ante a crescente independência de suas mulheres, também reflexo da época. Por trás da aura de comédia à moda antiga, subsiste a engenhosidade do texto. Nas duas cenas iniciais, o autor estabelece as bases sobre as quais vão se desenrolar os mal-entendidos do quarteto, uma narrativa na qual um mísero descuido de encadeamento basta para que o conjunto venha abaixo. O desafio do texto é extensível aos atores: nem mesmo um pronome de tratamento pode ser usado em falso sem prejuízo total da encenação.

A direção conjunta de Ary Coslov e Edson Fieschi aposta nessa cômica engenhosidade do texto (traduzido por Alexandre Tenório) e investe em uma encenação sem invencionices, apropriadamente tradicional – à moda antiga, pode-se dizer, evocativa da atmosfera da peça e presente no cenário de Marcos Flaksman, nos figurinos de Marília Carneiro e na luz de Maneco Quinderé. No mesmo sentido são conduzidas as interpretações. Blois aproveita na postura corporal, nas variações expressivas do rosto e na impostação vocal o ar um tanto apalermado de Greg, contrabalançado pela objetividade graciosa da Ginny de Anna Sophia. Gabus Mendes mostra bom timing de comédia como o marido desnorteado que tenta entender o que está acontecendo, especialmente nos diálogos com Blois. Presença bissexta nos palcos, Vera injeta certa galhofa brasileira ao tom predominantemente inglês abraçado pela direção, mas conquista a plateia com seu proverbial carisma.

[foto: Caio Gallucci]

Hamlet – Processo de Revelação

Em dado momento de Hamlet – Processo de Revelação, o ator Emanuel Aragão informa à plateia que nenhum outro assunto na história rendeu tantos estudos publicados quanto a clássica tragédia de William Shakespeare sobre o malfadado príncipe da Dinamarca. Como, partir da imponência amedrontadora dessa informação, construir um olhar minimamente inovador sobre Hamlet? Tal parece ser a faísca que deu origem a este aliciante espetáculo, idealizado pelo próprio Aragão, responsável pela dramaturgia, em conjunto com os irmãos Adriano e Fernando Guimarães, diretores da montagem.

Trata-se, a rigor, não de uma peça (sem qualquer demérito aqui, absolutamente), mas de uma performance, uma exposição comentada da trama, em tom evocativo de uma palestra – daí Aragão dirigir-se ao público em primeira pessoa -, mas que incorpora organicamente elementos do teatro. A tarefa que Aragão se propõe é, para dizer o mínimo, temerária: contar, ainda que de forma resumida, a história de Hamlet (e, em certa medida, interpretá-la), contextualizar historicamente a obra e ainda estabelecer uma hipótese analítica sobre a sua dramaturgia, expondo, no processo, o seu próprio envolvimento com a peça.

Se apenas isso já não fosse complicado o bastante, como em toda palestra, o ator/autor ainda se dispõe a enfrentar a interferência ativa do público: logo de saída, ele avisa que os espectadores são livres para comentar e perguntar o que quiserem a qualquer momento. Radicaliza-se, assim, a ideia de que cada apresentação teatral é singular, mesmo que a peça seja a mesma: aqui, a cada sessão, irrompem novos caminhos que se entrecruzam com o fio condutor do espetáculo – essencialmente, uma reflexão sobre o célebre monólogo do “ser ou não ser”, este nunca perdido de vista por Aragão. E, magicamente, tudo se encaixa.

Senhor do texto e dono de um carisma singular, Aragão transita com desenvoltura entre a palestra e a peça, construindo pontes entre um lugar e o outro através de sua própria história. O resultado é a transfiguração do espectador, de observador passivo da obra em parte integrante e indissociável da mesma. A direção dos irmãos Guimarães, prestando um favor ao conceito da montagem ao valorizar a palavra, abraça certo despojamento – a rigor muito calculado, como ademais a luz de Dalton Camargos e Sarah Salgado, a cenografia dos diretores e de Ismael Monticelli e o figurino, também de Monticelli e Liliane Rovaris.

[foto: Ismael Monticelli]

Como me Tornei Estúpido

Há três tipos de boas comédias (boas, porque as ruins não interessam): 1) as mais sofisticadas, com texto inteligente, cheio de referências espertas, mas não tão engraçadas, pelo menos não no sentido de provocar risadas genuínas; 2) as mais escancaradas, com texto francamente popular e referências menos requintadas, mas que extraem sonoras gargalhadas da plateia; 3) aquelas que conseguem unir o melhor dos dois tipos anteriores. É nesse último gênero que se encaixa Como me Tornei Estúpido, adaptação do livro homônimo do francês Martin Page, assinada por Pedro Kosovski. Autor de trabalhos reconhecidamente arrojados, como Cara de Cavalo, Edypop e, mais recentemente, Laio e Crísipo e Caranguejo Overdrive, ele aqui usa todo o seu traquejo de dramaturgo a favor de uma comédia verdadeiramente divertida.

Na história, Antônio (Alexandre Barros), um jovem de inteligência e consciência crítica muito acima da média, conclui que tais atributos nunca lhe renderam nada de proveitoso e decide se transformar em um estúpido completo. Seus amigos (interpretados por Gustavo Wabner, Marino Rocha e Rodrigo Fagundes, também encarnando outros personagens que cruzam a vida de Antônio) tentam de todas as formas demovê-lo da ideia – ademais, estúpida, no que é a ironia primeira da história – de se converter em um miolo-mole. Mas não há jeito: Antônio fará de tudo para se tornar um sujeito comum, parte indissociável da massa ignara, um zé-ninguém, nem que para isso tenha que apelar aos expedientes mais radicais, como tornar-se alcoólatra, ingerir fármacos ou até submeter-se a uma lobotomia. Irrompem do texto reflexões sobre a exigência da idiotice e da massificação por parte da sociedade como passaporte para uma vida mais feliz.

Em que pesem as liberdades com relação ao livro, apenas os fãs mais ardorosos do livro (facção comum em leitores de Harry Potter, Game of Thrones e por aí vai, mas nem tanto aqui) se sentirão traídos pela excelente adaptação de Kosovski, hábil em condensar toda a essência da trama literária em uma versão apropriada para os palcos. O diretor Sergio Módena se apropria com enorme gosto da atmosfera um tanto surrealista presente no texto, estendendo tal proposta à encenação. O cenário (do diretor e de Carlos Augusto Campos, iluminado a serviço da trama por Tiago e Fernanda Mantovani) é, funcional  e inteligente em sua recriação cena e cena a partir de poucos elementos, notadamente estantes de livros que evocam a inteligência à qual o protagonista quer renunciar.

Envergando figurinos realistas, mas beirando o inusitado (muito apropriados tendo em mente a pegada surrealista da montagem), os atores formam um time coeso, daqueles que não se imagina como substituir um sem prejuízo da montagem. A direção orquestra esse conjunto com exímia habilidade, distribuindo protagonismos. Pela própria natureza dos personagens e das falas que lhes são atribuídas, os atores coadjuvantes (Wabner, Rocha e Fagundes) levam vantagem de saída, arrancando as risadas mais sonoras do público. Cabe a Barros, na pele do protagonista, o difícil papel do anti-herói, transitando entre o humor e o patético com a desenvoltura que merece um olhar cuidadoso. Enfim, uma comédia inteligente, mas que em momento algum tem vergonha de se assumir como comédia.

[foto: Ricardo Brajterman]