Mata teu Pai

Em Mata teu Pai, primeiro monólogo da atriz Debora Lamm, celebrando aqui vinte anos de carreira, o feminino transborda como um grito urgente e incoercível. “Preciso que me escutem”, é o que brada, logo na primeira fala do espetáculo, esta Medeia contemporânea – uma des(ou re?)construção da personagem mítica e da protagonista da tragédia grega, sob a pena sempre hábil de Grace Passô. E, de fato, há muito por ser escutado.

Trata-se, à sua maneira, de um libelo feminista – vigoroso e até beligerante, mas de uma riqueza, poética no texto e teatral na encenação, que dilui qualquer ranço panfletário ou doutrinário. Aqui, à desdita da Medeia clássica, traída pelo amado e impelida a matar seus próprios filhos como vingança, interpõem-se temas prementes à mulher de hoje, como aborto, estupro, equidade, intolerância, estigmatização e preconceito.

A direção de Inez Viana, engenhosa como de hábito, imprime uma extensa gama de sentidos na condução desse curto mas demandante tour de force, alternando ritmos e climas. Contribuição decisiva nessa riqueza de significados tem o cenário de Mina Quental, evocando algo como um cemitério de lixo eletrônico (monitores, teclados, carregadores de celulares, baterias), uma terra arrasada onde a humanidade teima em subsistir.

Rodeada em cena por catorze senhoras moradoras da região da Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro – um achado que sugere um coro grego a amparar os desvarios de Medeia -, Debora Lamm tem aqui o que talvez seja o papel de sua vida. Senhora absoluta do texto e de suas intenções, a atriz exibe a um só tempo técnica e expressividade, em performance de notável entrega. Não é ela que precisa que a escutem, nós é que precisamos ouvi-la.

[foto: Aline Macedo]

Os Inadequados

Uma passeada rápida pelo Facebook comprova: no Brasil de 2016, a intolerância parece ter se entranhado indelevelmente na natureza das pessoas – uma praga avassaladora que não discrimina espectro ideológico. Em Os Inadequados, seu quinto espetáculo, a Cia OmondÉ converteu esse sufocante estado de coisas em teatro de rara qualidade: antenado com seu tempo, mas atemporal; contundente, mas não doutrinário; político, mas não partidário; engraçado, mas reflexivo; arrojado cenicamente, mas sintonizado com a plateia.

Na base da montagem está uma ideia da atriz Debora Lamm (integrante da OmondÉ, mas ausente no elenco da peça), que sugeriu a criação de um texto a partir de extratos reais de livros de reclamação de condomínios. Desenvolvida coletivamente pela companhia, a dramaturgia prescinde de uma história tradicional, com início, meio e fim. Em vez disso, aposta na força intrínseca das mensagens de moradores queixosos de seus vizinhos, aqui costuradas e proferidas de um lugar que sugere um recital sem abandonar a teatralidade.

De saída, o resultado é fabuloso em sua capacidade de evocar, no microcosmo das relações entre vizinhos, o clima de intolerância radical que se instalou no país. Há reclamações sobre tudo: música alta, animais de estimação, sexo barulhento. A essas mensagens reais, com as quais a plateia fatalmente se identifica em algum momento, misturam-se duas ou três criadas por atores da companhia – e é de espantar que o absurdo reinante na maior parte das missivas pareça sugerir que a melhor ficção pode ser suplantada pela realidade.

O material colhido pela OmondÉ seria, em si, farto para a realização de uma peça que se entregasse desbragadamente à comédia – e não seria, necessariamente, um espetáculo ruim por isso. Mas, a companhia opta pelo caminho mais trabalhoso: dosar humor e reflexão em cada aspecto da montagem. Na costura das mensagens, no ritmo dado à encenação, no tom das interpretações, nada dá sinais de histrionismo cômico. A decisão encontra amparo em um minimalismo cenográfico que só faz reforçar o discurso.

A direção de Inez Viana (aqui assistida por Helder Agostini e Lucas Lacerda), como de hábito, é intrigante, fresca mesmo para quem julga conhecer seu trabalho, visível sem obscurecer a dramaturgia. Com colaboração decisiva de Dani Amorim na idealização das coreografias, o elenco – formado por Iano Salomão, Jefferson Schroeder, Juliane Bodini, Junior Dantas, Leonardo Bricio, Luis Antonio Fortes, Marta Paret e Zé Wendell – exibe uma força em conjunto que dispensa menções individuais. Nada mais apropriado para uma peça cuja principal reflexão é justamente sobre o convívio.

[foto: Aline Macedo]

Fatal

O universo dos mitos não é exatamente novo para Guilherme Leme Garcia. Como diretor, ele esteve à frente dos ótimos RockAntígona (2010) e Trágica.3 (2014), montagens que, a partir de um olhar arrojado, exploravam ícones da tradição helênica em desbravamentos cênicos. Agora em Fatal, ele se espraia para além da Grécia (sem, entretanto, abandoná-la de todo) e mantém o padrão de excelência. Aqui, a ideia é versar sobre o amor por meio de lendas de três apaixonados casais – personificados em cena por Debora Lamm e Paulo Verlings. A convite do diretor, cada uma das três histórias foi livremente reinterpretada por um nome de peso da dramaturgia contemporânea nacional. Assim, Pedro Kosovski escreveu sobre Eros e Psiquê, pinçado da mitologia grega; Marcia Zanelatto se incumbiu de Tristão e Isolda, de origem celta; e a Jô Bilac coube Kama e Rati, de proveniência indiana.

Em que pese a diversidade entre os textos, os três soam unidos por evocações líricas, garantindo uma potente coesão. O diretor tomou partido dessa linha mestra no palco, confeccionando um belo poema cênico em três estrofes, cada qual com suas marcações singulares, mas perfeitamente integradas. Cada elemento da montagem converge para essa abordagem poética – o cenário de Aurora dos Campos, sugerindo uma câmara ou mesmo um altar, a luz algo mística de Tomás Ribas e os figurinos negros de Marcelo Olinto remetem a um lugar onírico. O tom das atuações segue essa linha, em um minimalismo radical de expressões e movimentos através do qual se vislumbra a força das palavras e se densifica o amor presente nos mitos. Debora e Verlings dominam o texto e estabelecem uma contracena poderosa (e dificílima) por trás de uma aparente ausência de interação.

[foto: Zô Guimarães]