Gritos

É de uma alquimia invulgar o que a Dos à Deux alcança em Gritos, seu mais recente espetáculo. Sozinhos em cena – como há dezoito anos no trabalho que batizou e originou a companhia -, André Curti e Artur Luanda Ribeiro revelam um profundo entendimento das possibilidades do teatro gestual, factível apenas a quem, como eles, tem se dedicado há anos com labor ao desbravamento dessa linguagem.

Desenvolvida ao longo do processo de pesquisa e criação da montagem, a dramaturgia é composta de três poemas cênicos – os gritos aos quais o título alude – evocativos da inexorável convivência entre angústia e amor. Surgem no palco uma mulher nascida em um corpo masculino, um homem com a cabeça e o corpo separados e desesperados por se encontrar, uma grávida sobrevivente da guerra.

Embasados em uma coerência artística que não abre mão de seus fundamentos, Curti e Luanda Ribeiro aqui, no entanto, desdobram sua pesquisa de linguagem ao utilizar, pela primeira vez, seus próprios corpos (ou partes deles) como modelos para os bonecos que são manipulados em cena – um assombro de execução, confeccionados em estreita colaboração com a marionetista russa Natacha Belova e o brasileiro Bruno Dante.

De um rigor absoluto na manipulação, calcado em sutilezas e minúcias, a Dos à Deux extrai a potência dramática de Gritos. Cenografia (da dupla, indicada aos prêmios Shell e Cesgranrio), luz (sofisticada em sua “escuridão”, de Luanda Ribeiro e Hugo Mercier, concorrendo ao Cesgranrio), figurinos (de Thanara Schonardie), música (de Marcelo H, Beto Lemos e Fernando Mota), tudo se integra perfeitamente ao conjunto, serve à dramaturgia e dialoga com ela.

Para além dos muitos méritos do espetáculo, talvez o mais significativo seja uma visão ampla do teatro gestual: uma arte que, ainda que fincada em um trabalho de observação acurada do mundo real, se torna tanto mais rica quanto mais se desincumbe da obrigação de imitar a realidade. Onírico, ilusório, impossível, são tais as instâncias com as quais o público se depara em Gritos e é nelas que o espetáculo fundamentalmente se realiza. Não é preciso verossimilhança onde a verdade se impõe.

[foto: Renato Mangolin]