Demônios

Sobre o que considerava uma reação incompreensível a suas peças, Nelson Rodrigues escreveu certa vez: “As senhoras me dizem: – ‘Eu queria que os seus personagens fossem como todo mundo’. E não ocorre a ninguém que os meus personagens são como todo mundo, daí a repulsa que provocam. Ninguém gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções.” É tal a sensação que Demônios, do sueco Lars Norén, provoca na plateia, um incômodo só possível de brotar no melhor teatro – que a montagem da Cia Teatro Esplendor, sob direção de Bruce Gomlevsky, potencializa em alto nível.

De saída, o adensamento da ação dramática no espaço de uma única noite já acentua a voltagem. A tensão se estabelece nos primeiros diálogos entre Frank (Bruce Gomlevsky) e sua mulher, Katarina (Luiza Maldonado), assim que ele chega ao apartamento do casal, carregando as cinzas da mãe recém-falecida. Eles aguardam o irmão de Frank e a esposa dele, mas a chegada das visitas é inesperadamente adiada. A relação doentia – e simbiótica – dos dois, então, vai se estender a Tomas (Gustavo Damasceno) e Jenna (Thalita Godoi), o casal de vizinhos (como se verá, também disfuncional), que eles chamam para um drinque.

Ao longo da noite, o que era para ser um encontro agradável entre conhecidos rapidamente se converte em uma escalada degradante de humilhações sem qualquer sinal de compaixão ou trégua. Atados a uma interdependência algo patológica, os quatro destilam incômodas verdades e se entregam a provocações sexuais que guardam ecos de Quem Tem Medo de Virgina Woolf, de Edward Albee, e Festa de Família, de Thomas Vinterberg (esta última, aliás, já montada duas vezes por Gomlevsky). É uma vertiginosa descida às infâmias cotidianas que o ser humano é capaz de cometer – e às quais, por vezes, se submete voluntariamente.

Encenador acostumado a esse universo – além de Festa de Família, já montou O Funeral, também de Vinterberg, A Volta ao Lar, de Harold Pinter, e O Homem Travesseiro, de Martin McDonagh, todos dramas impregnados de vileza -, Gomlevsky se mostra à vontade na condução desta montanha-russa emocional. Como nos trabalhos anteriormente citados, há uma evidente valorização do texto, das reflexões que emergem dele e, como decorrência necessária disso, das relações entre os personagens e da dinâmica entre os atores. Aqui, entrosamento se revela gênero de primeira necessidade – e é plenamente alcançado.

Não que faltem méritos ao restante da ficha técnica: visualmente, cenário (de Gomlevsky e Bel Lobo), figurinos (de Andrea Fleury) e luz (de Elisa Tandeta) não apenas emolduram a encenação como revestem situações e personagens de significados. Vale destacar, aliás, a conformação da plateia na temporada original da montagem, com a maior parte do público elevado acima do palco, circundando-o, como se observasse uma rinha de galos ou uma luta de gladiadores, e mais alguns poucos espectadores sentados nas beiradas, como se imersos na cena – circunstância dificilmente reproduzível em um palco italiano.

Aqui, entretanto, quem comanda o baile (ao som de Norén) são mesmo os atores, bem-sucedidos na dura missão de tornar crível uma sucessão de perversidades demasiadamente humanas. Positivamente, não há destaques a serem apontados: com atuações tão precisas quanto vibrantes, Gomlevsky, Luiza, Damasceno e Thalita entendem cada qual a sua posição no tabuleiro e sua dinâmica com os demais. Entre dubiedades de intenções e explosões furiosas de sinceridade, os quatro vão tirando esqueletos do armário – os deles e aqueles que nós, espectadores, gostaríamos de manter escondidos.