Os Inadequados

Uma passeada rápida pelo Facebook comprova: no Brasil de 2016, a intolerância parece ter se entranhado indelevelmente na natureza das pessoas – uma praga avassaladora que não discrimina espectro ideológico. Em Os Inadequados, seu quinto espetáculo, a Cia OmondÉ converteu esse sufocante estado de coisas em teatro de rara qualidade: antenado com seu tempo, mas atemporal; contundente, mas não doutrinário; político, mas não partidário; engraçado, mas reflexivo; arrojado cenicamente, mas sintonizado com a plateia.

Na base da montagem está uma ideia da atriz Debora Lamm (integrante da OmondÉ, mas ausente no elenco da peça), que sugeriu a criação de um texto a partir de extratos reais de livros de reclamação de condomínios. Desenvolvida coletivamente pela companhia, a dramaturgia prescinde de uma história tradicional, com início, meio e fim. Em vez disso, aposta na força intrínseca das mensagens de moradores queixosos de seus vizinhos, aqui costuradas e proferidas de um lugar que sugere um recital sem abandonar a teatralidade.

De saída, o resultado é fabuloso em sua capacidade de evocar, no microcosmo das relações entre vizinhos, o clima de intolerância radical que se instalou no país. Há reclamações sobre tudo: música alta, animais de estimação, sexo barulhento. A essas mensagens reais, com as quais a plateia fatalmente se identifica em algum momento, misturam-se duas ou três criadas por atores da companhia – e é de espantar que o absurdo reinante na maior parte das missivas pareça sugerir que a melhor ficção pode ser suplantada pela realidade.

O material colhido pela OmondÉ seria, em si, farto para a realização de uma peça que se entregasse desbragadamente à comédia – e não seria, necessariamente, um espetáculo ruim por isso. Mas, a companhia opta pelo caminho mais trabalhoso: dosar humor e reflexão em cada aspecto da montagem. Na costura das mensagens, no ritmo dado à encenação, no tom das interpretações, nada dá sinais de histrionismo cômico. A decisão encontra amparo em um minimalismo cenográfico que só faz reforçar o discurso.

A direção de Inez Viana (aqui assistida por Helder Agostini e Lucas Lacerda), como de hábito, é intrigante, fresca mesmo para quem julga conhecer seu trabalho, visível sem obscurecer a dramaturgia. Com colaboração decisiva de Dani Amorim na idealização das coreografias, o elenco – formado por Iano Salomão, Jefferson Schroeder, Juliane Bodini, Junior Dantas, Leonardo Bricio, Luis Antonio Fortes, Marta Paret e Zé Wendell – exibe uma força em conjunto que dispensa menções individuais. Nada mais apropriado para uma peça cuja principal reflexão é justamente sobre o convívio.

[foto: Aline Macedo]